- O Mar é como uma grande porção de água azul. - Sua voz é tão macia e livre de malícia que poderia falar por horas até começar a me incomodar.
- Eu não sei o que é azul e nem como é uma porção de água. - Eu já havia sentido a água infinitas vezes, ela caiu do céu como chuva e serve para beber, mas não tem como agarrar a água, pois ela escapa entre os dedos.
- Como eu posso conversar com alguém que não sabe a diferença entre azul e vermelho?
- Não existe razão para essa irritação, minha falta de visão por não me permitir distinguir azul e vermelho, mas eu sou igualmente capaz de saber que vermelho é a cor do fogo e que fogo é algo perigosíssimo, um dos elementos da natureza mais perigosos - Posso não enxergar, mas quando dou a falar sobre as coisas que sei faço as pessoas desejarem que eu fosse mudo ao invés de cego - Os outros elementos são água, terra e ar, esses elementos formam tudo no mundo.
- Esqueceu da luz e da sombra - Sinto seu cheiro, escuto sua voz, dura, pesada, arrastada e aquele odor de poeira, mas não estou escutando mais a Gil - E a garota foi embora antes de você começar a falar, deveria ser um pouco mais humilde, foi rude da sua parte não perceber que a garota foi embora.
- Ela saiu? - Na minha longa e dolorosa década de vida eu sempre soube que era destinado a solidão, mas esses pensamentos sempre são seguidos de um sorriso e outro sobre não ter auto piedade e como a vida é ao mesmo tempo bela e cruel.
- Sim, com você tagarelando sobre elementos qualquer um desses ignorantes sairia correndo - Sinto ele sentado do meu lado e seu cheiro de poeira é mesclado com cheiro de vinho e pão velho.
- Você falou algo sobre luz e sombras - O velho me despertou a curiosidade que é digna de qualquer criança normal.
- Sim é verdade, eu falei. Luz e sombras são ambas formadoras do nosso mundo, imagine viver sem luz, viver nas sombras eternamente. Se todos fossem como você, os humanos teriam sido extintos a muito. Uma deliciosa refeição para qualquer animal disposto a atacar - Escuto o cantar dos pássaros e a conversa alheia, mas nada disso tira minha atenção das palavras do velho. O som que ele emite ao abrir a boca parece muito com a recitação de uma poesia ou o hipnotismo da cobra antes de avançar sobre o rato - Mas só a sombras quando existe luz, portanto essa primeira é serva da segunda.
- O senhor falou que eu vivo nas sombras, onde está minha luz?
- É um rapaz bastante esperto meu jovem.
Só percebi que o velho tinha saído quando escuto minha mãe me chamar, eu devo ser bastante mal educado, mas de qualquer maneira ainda me sobrou algumas tarefas de casa para fazer e mesmo sem poder enxergar eu conseguia realizá-las sem problemas, na maioria das vezes.
...
- Como você sabe se está dormindo ou acordado? Não é a mesma coisa para você? - Rood era o meu melhor amigo, sempre pescávamos juntos, bem ele pescava e eu ficava sentando escutando as águas do rios correrem.
- Você pode fechar os olhos e descobrir por si só - Pondero sobre o que o senhor falou a alguns dias atrás, onde será que está minha luz? Um mundo de sombras e um reino de trevas. Não existe luz, meu reino é escuridão - De onde saiu esse pensamento.
- O que está murmurando ai? - Rood perguntou
- Nada, só estava pensando alto - Tão alto quanto estranho.
Depois de algum tempo Rood pegou a vara de pescar dele e saiu sem dizer uma palavra, mas dessa vez eu estava atento e pude perceber seus passos indo para longe. Fiquei mais um pouco antes de voltar para casa , o graveto que eu usava para me guiar tornavam meus passeios menos constrangedores e criando pontos de referência ou poderia ir e voltar para minha casa de quase qualquer lugar próximo.
Com o meu graveto guia eu acerto um pequeno sino que fica pendurado no chão e isso indica que estou na casa correta, na verdade me orgulho bastante desse sino já que foi eu quem desenvolveu ele, meu pai só teve o trabalho de montá-lo como eu queria. Dentro da minha casa o cheiro era sempre de flores, minha mãe as colhia, e mesmo que eu não pude ver conhecia cada detalhe o local e onde cada coisa ficava, meus pais tinham o cuidado de não mover nada de local sem me avisar para não atrapalhar minha percepção.
- Ora, ora, ora, se não é o garoto esperto - Dou um passo em falso para trás, aquela voz era do senhor de alguns dias atrás, mas dessa vez estava diferente, muito mais abissal e também dessa vez não senti cheiro algum.
- O que você faz aqui? Saia da minha casa agora! - Usei toda a minha essência ameaçadora para expulsar o intruso da minha casa, mas ele apenas riu.
- Se não o que? Vai me acertar com esse graveto? - Eu já havia empunhado o graveto como um cavaleiro empunha uma espada, quer dizer como eu achava que um cavaleiro empunhava uma espada - Mesmo que pudesse ver jovem, eu nem mesmo estou aqui de verdade, meu lar é em Lunaria.
- O que está falando? Como pode estar em Lunaria?
- Magia, que pergunta idiota - O velho responde.
- É impossível, em Nasperia todo e qualquer tipo de magia é proibida.
- Seus pais discordam disso e você logo vai notar uma mudança brusca na sua situação. Até Lunaria a caminhada é em linha reto do portão norte, mas não sei se vão deixar você passar. Ester está vindo, não conte a ela sobre mim.
- Hendrik, é você? - Escuto a voz da minha mãe, mas meus pensamentos estão em outro lugar. Seus passos se tornam mais altos e quando sinto seu cheiro ela já está próxima o suficiente para tocar as mãos em meu rosto - Está bem querido? Deve estar com fome, venha vamos comer, seu pai já está na mesa.
...
Não sei exatamente como são as mãos, normalmente tem cinco dedos e em cada dedo uma ponta mais dura, elas dobram em várias partes dos dedos e quando fechada possui uma parte alta mais dura, elas machucam. Não era incomum que outras crianças me baterem, algumas vezes só por diversão , mas nunca houve uma surra tão forte quanto essa. Sinto o gosto de sangue na boca, vejo também que eles conseguiram tirar minha camisa, mesmo que não lembre quando isso aconteceu. Rood tinha uma respiração ofegante e cansada, mas consegui distinguir a risada de Gil no meio as outras.
- Crianças terríveis, muito, muito terríveis - O velho estava aqui novamente, mas dessa vez sua voz estava normal e seu cheiro também - Não volte para casa.
- O que você quer? - Não demoro para encontrar minha camisa no chão.
- No momento eu quero impedir que você vá para casa - Depois de vestir minha camisa passei a caminhar na direção do poço, por sorte alguém estava pegando água e foi fácil me localizar mesmo sem o graveto.
- Se você soubesse magia poderia dar cabo de todos eles sem dificuldades.
- Todos sabemos magia, mas é proibido por lei utilizá-la em Naspera - Respondo enquanto caminho, o sino toca, parece que estou próximo demais dele assim sendo meu caminho é o da direita.
- Está errado, essa lei estúpida impede que as pessoas usem magia e sem a pratica com o tempo essa habilidade passa a ser quase nula aqui. Toda a riqueza de Nasperia não valerá nada, sua casa está logo a frente, dê meia volta - Logo depois eu parei de sentir
seu cheiro.
Ele não mentiu quando disse que minha casa estava logo a frente, usei meu pé para tocar o sino no chão e quando entrou sou recepcionado por um onda de cheiros novos e velhos, além de um calor sem precedentes, mas logo sou abordado por minha mãe.
- Hendrik! O que aconteceu, como foi se machucar assim? - Suas mãos quentes tocam as feridas do meu rosto e sinto uma leve pontada sempre que isso acontece, mas não reclamo. Subitamente ela para de me tocar - Meus deus... Esse desenho, Hendrik quem fez isso? Kurt! Rápido! - Nunca havia ouvido esse tom de voz na minha mãe antes, parecia medo. Quando meu pai chegou ele imediatamente tirou minha camisa e nesse momento batidas na porta foram ouvidas seguidas de um arrombamento.
- Somos guardas reais servindo e em nome do rei vinhemos aqui averiguar uma denuncia de prática de magia - O homem que falava tinha uma voz ríspida, mas notei que ele não estava sozinho, mais dois homens o acompanhava.
- Está enganado senhor, não existe prática alguma de bruxaria aqui - Minha mãe me puxou para trás enquanto meu pai se aproximou dos guardas.
- E como você explica o símbolo na camisa do garoto? Homens! As armas! - Um simbilar de espadas cortando suas bainhas e o grito de minha mãe foi o suficiente para me fazer correr para os fundos, mesmo sabendo o caminho eu acabei derrubando algumas coisas pelo caminho, antes de sair da minha casa consegui ouvir uma explosão e o gritos guardas. Saindo pelos fundos eu corri para frente e continuei até sentir o cheiro de poeira novamente.
- Mais a frente existe um beco, fique lá e espere a noite cair - Caminhei um pouco mais e sente-me no chão recostado em uma parede. Senti lágrimas escorrendo sobre minhas bochechas e invadindo minha boca.
- Seu pai é bem versado no elemento fogo, mas isso não será de muito utilidade contra os outros 10 guardas reais, eles vão procurar você aqui - O velho empoeirado continuava falando - Você terá mais algumas horas para descansar antes de sair da cidade, seus pais serão capturados e executados, por tanto não precisa se preocupar com eles, agora durma um pouco.
Não lembro de nada depois disso, as próximas horas foram sem sonhos, quando voltei a consciência notei que já estava de noite pelo frio que sentia, notei também que existia grama sobre meus pés, onde é que eu estou?
- Você dormiu demais. No momento está fora das muralhas de Nasperia e a alguns dias de caminhada até Lunaria. Para ser sincero eu tomei posse do seu corpo e assassinei um guarda para pular o muro, suas mãos ainda estão pegajosas - É verdade, sinto algo nas minhas mãos e o cheiro, tem cheiro de ferrugem - É brincadeira rapaz, não faça essa cara. Não tem como pular o muro.
...
Uma vida inteira não pode ser descrita em algumas páginas, mas seu ponto de ignição sim, no momento em que Hendrik aceita a tutela daquele senhor ele se torna mais perigoso que a própria natureza humana, sua vida não foi fácil e os ensinamentos do mestre foram aprendidos as duras penas e ainda sim ele perseverou. Sua paixão, sua desgraça, suas lembranças e a falta delas, seus medos e suas aventuras, não existe espaço para falar sobre tudo isso. Hoje ele se recolhe em Lunaria, ainda morando na casa do antigo mestre aprendendo e melhorando, esperando o momento em que vai se tornar o próprio doutrinador.